Somente na região do Baixo Tocantins foram
registradas, entre 2017 e 2018, mais de duas mil ações na Justiça
Federal que relatam a mesma ocorrência: o saque indevido do seguro
Defeso. Em todo o Pará, também nos últimos dois anos, 205 mil seguros
foram liberados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Maria Lindalva, ao ser informada que seu seguro havia sido retirado
por outra pessoa, registrou imediatamente um Boletim de Ocorrência
(B.O), na delegacia, contra a Caixa Econômica. Descobriu pelo banco,
depois, que o saque foi feito em Belém. Naquele dia, começou a saga em
busca de seus direitos, que ainda não teve fim.
O mesmo ocorreu com famílias de pescadores de Cametá, Igarapé-Miri,
Limoeiro do Ajuru, Moju e demais municípios da região. Em Abaetetuba,
dos 9.400 trabalhadores segurados, 52 entraram com ações na Justiça, com
auxílio da assessoria jurídica da Colônia de Pescadores Z-14, do
município. Todos os casos trazem em um comum o fato de que o lugar onde o
dinheiro foi retirado indevidamente está localizado em outras cidades
e, muitas vezes, em Estados que as vítimas nunca visitaram, como Ceará,
São Paulo e Distrito Federal.
Cláudio Lobato, presidente da Colônia desde o dia 16 de janeiro de
2017, afirma que, segundo relatos, a irregularidade nunca tinha
acontecido a nenhum pescador das 72 ilhas que fazem parte de Abaetetuba.
De acordo com ele, o que mais preocupa aos trabalhadores quando os
golpes ocorrem é o modo como irão assegurar sua subsistência e o
pagamento de dívidas feitas durante o período de quatro meses da
Piracema, quando ocorre a reprodução dos peixes e os profissionais são
impedidos de pescar. No caso de Abaetetuba, a espécie encontrada em
maior abundância é o Mapará, pescado que é preservado durante o período
de 1 de novembro a 28 de fevereiro.
"As pessoas sofrem um abalo psicológico muito grande quando descobrem
que foram lesadas. Algumas delas levam quatro horas para vir das ilhas,
do interior de Abaetetuba, para a cidade, somente para receber o
seguro-Defeso e, na vinda, acumulam mais dívidas do que já tinham.
Depois, quando chegam, descobrem que não existe mais o dinheiro e ficam
esperando o tempo de um julgamento judicial, que demora. Essas pessoas
acabam passando necessidade", assegura Cláudio Lobato, que nasceu na
ilha de Tabatinga, também em Abaetetuba.
Mesmo sem acesso ao seguro de que tinham direito, os pescadores
lesados continuam impedidos de trabalhar em outro ofício, pois, caso
façam isso, é "descaracterizada a qualidade de assegurado especial", diz
o presidente da Colônia. "Se a pessoa trabalhar como uma merendeira,
por exemplo, por não ter recebido o seguro, ela já perde todo o seu
direito, já que a lei é para todos. Mesmo se a pessoa vender só um
perfume, o sistema de controle da Previdência pode identificar e ela
perde o direito", reitera.
Os advogados Stephanie Galvão e Gabriel Almeida, que acompanham os
casos da Colônia Z-14 como assessores jurídicos, consideram que, além de
dificultarem o sustento das famílias durante a época da Piracema, os
roubos de seguros Defeso também comprometem a manutenção dos
instrumentos de trabalho do pescador.
"A Justiça, muitas vezes, age de
forma incorreta por não conhecer a realidade dessas pessoas, por não
entenderem que eles precisam desse dinheiro para seguirem trabalhando.
Por vezes, as autoridades colocam dificuldades, como a exigência de
comprovante de residência, quando, na documentação do pescador consta,
na verdade, apenas o endereço da sede da Colônia", exemplifica Almeida.
Em sua casa, na ilha Sirituba, no igarapé Limão, Manuel de Jesus
mostra a rede já velha e desgastada, que seria trocada por uma nova se
tivesse recebido o dinheiro. "Essa aqui já não presta, está toda
esburacada, mas o jeito é costurar e reaproveitar. Só o pano para uma
nova custa R$ 200. Outra coisa que eu faria são os reparos da embarcação
para o tempo da alta da pesca. Além, é claro, de pagar a Colônia e os
gastos da casa", enumera o pescador.
Com a falta do dinheiro, as compras de gasolina para o motor do barco
e de botijão de gás de cozinha para o preparo dos alimentos também
foram impossibilitadas. Como alternativa para a navegação, Manuel usou a
criatividade e construiu uma vela feita com uma lona de plástico usada
originalmente para cobrir colchão, por isso traz impressa a marca Onix. E
para substituir o fogão a gás, a solução foi utilizar lenha.
"É assim que fazemos a nossa comida", relata, enquanto mostra o
cômodo da casa onde fica o forno. "Se não tem o seguro, não tem como
comprar gás, ainda mais no preço em que está", completa Manuel.
Lindalva, responsável pela cozinha, diz que alguns alimentos faltam, mas
que o camarão e o peixe, desde que a pesca voltou a ser permitida,
depois do dia 28 de fevereiro, garante a alimentação dela, do marido, e
dos filhos; Marilene Ferreira Bailão, de 13 anos, e Maelson Ferreira
Bailão, de 11 anos.
"Sistema falho"
No mês passado, o presidente da Colônia Z-14 participou de uma
reunião com a equipe técnica da Caixa Econômica Federal, com o objetivo
de receber esclarecimentos sobre os saques indevidos. O resultado, no
entanto, segundo Cláudio Lobato, não foi o esperado. "O representante
saiu irritado da reunião, sem dar respostas.
Ele se sentiu ofendido
quando foi dito que a Caixa Econômica é a principal responsável quando o
pescador tem o seu seguro Defeso recebido por outra pessoa. Eu digo
isso porque não consigo entender a razão do dinheiro ser sacado por
outra pessoa se o pescador tem os seus documentos analisados. Como é que
outra pessoa consegue sacar? Creio eu que o sistema de pagamento da
Caixa é muito falho, infelizmente", questiona Lobato.
Além dos pagamentos indevidos, os pescadores de Abaetetuba também já
tiveram problemas com o pagamento do seguro Defeso neste ano, desde que o
Governo Federal colocou em prática um novo modelo de processamento de
requerimentos; o processamento automático.
"Fomos convidados para uma
reunião no dia 25 de novembro de 2018, onde fomos informados pelo INSS
que o sistema passaria de digital para automático. No digital você
enviava os documentos, que iam para os servidores do INSS, que
indeferiam ou não indeferiam, dependendo da situação. No automático,
como o nome diz, você não precisaria mais enviar para os técnicos",
relata o presidente.
A mudança, no entanto, não funcionou. No dia 1º de janeiro, "o
sistema rodou com 92% de erros, e não foi só aqui, foi em todo o Estado.
Com isso, os pescadores lotaram as colônias querendo explicações.
Explicações que nem nós tínhamos. Aconteceu, por exemplo, de um registro
que estava ativo na Secretaria de Aquicultura e Pesca, aparecer como
inativo", prossegue o representante dos pescadores.
As falhas da nova forma foram reconhecidas pelo Governo e, após o
lançamento da nova rodada de lançamentos, que iniciou na última
quarta-feira, 20, e vai até o dia 30 deste mês, o modelo anterior
retornará. É o que foi assegurado a Cláudio Lobato na última
segunda-feira, 18, em Brasília, em reunião realizada com representantes
do INSS. "Um dos criadores do sistema automático me disse que (o
sistema) foi 'um tapa na cara'. Nos pediu desculpas e reconheceu todos
os erros", relata.
No mês de junho deste ano, um novo recadastramento será realizado com
os pescadores de todo o país. A operação será realizada pela
Controladoria Geral da União (CGU), pela Polícia Federal e pela Marinha
do Brasil.
O presidente da Colônia elogia a iniciativa. "Para nós, o
interessante é que todos os erros sejam solucionados e, caso existam
pessoas que não são pescadores e estão recebendo como tal, que isso seja
descoberto. Digo, desde que assumi, que nosso compromisso é com os
pescadores de verdade", conclui.
Em nota enviada a O LIBERAL, o Ministério da Economia afirma que o
INSS iniciou, em 10 de dezembro passado, o processamento automático do
573.000 requerimentos do Seguro Desemprego do Pescador Artesanal
(SDPA), na primeira fase, em todo o país. O orgão diz ainda que o
"processamento resultou em 70 mil requerimentos em exigência
(pendências decorrentes do batimento das várias bases de dados
governamentais)".
Neste caso, o pescador deve ser notificado por sua
entidade representativa que tenha Acordo de Cooperação com o INSS." As
tarefas serão tratadas à medida do cumprimento das exigências,
permitindo a liberação das parcelas, inclusive as atrasadas, se houver. O
pagamento será feito conforme cronograma divulgado pela Caixa, de
acordo com o final dos números do PIS/NIS do pescador", assegura o
comunicado.
"Cabe esclarecer que essa é uma nova sistemática para as rotinas do
INSS. Assim, é natural que haja o contínuo aprimoramento do batimento de
dados, assim como a atualização de bases governamentais, a fim de
assegurar a concessão do benefício de forma segura e eficiente.
Vale
destacar que, nesta nova sistemática, não houve a necessidade do
pescador se deslocar até uma Agência do INSS para requerer o benefício,
desde que tenha recebido o SDPA em 2017 e cujos cadastros estejam
regulares em 2018", afirma a nota. O Ministério da Economia diz que não
tem informações sobre golpes ou fraudes.
A Caixa Econômica encaminhou nota afirmando que "atua constantemente
na prevenção de eventuais fraudes e realiza monitoramento online das
operações que envolvem o pagamento de benefícios". Segundo o banco
público, seu objetivo é evitar eventuais pagamentos indevidos e enfatiza
que o cartão e senha cidadão são pessoais e intransferíveis, não
devendo ser fornecidos para outra pessoa.
"Como medida de segurança, a CAIXA também orienta que os clientes não
peçam ajuda para pessoas desconhecidas que estejam no setor de
autoatendimento das agências, devendo ser atendidos apenas por
empregados ou prestadores de serviço do banco, devidamente identificados
com crachá", finaliza a nota.
Santarém
Em Santarém, no oeste do Pará, pelo menos 33 pescadores associados à
Colônia de Pescadores Z-20, também apresentaram problemas para sacar
parcelas do seguro Defeso em fevereiro deste ano. De acordo com matéria
publicada pelo portal G1, os representantes da Z-20 acreditam que os
associados estejam sendo vítimas de uma quadrilha que está realizando os
saques no estado de Pernambuco.
“Essa fraude não está acontecendo só em Santarém, mas em todo o Pará.
Todos os saques que nós identificamos foram feitos de Pernambuco. Ainda
não temos como comprovar, mas imaginamos que essas pessoas estejam
solicitando a segunda via dos cartões cidadão”, explica o diretor do
patrimônio e finanças da Z-20, Jucivaldo dos Santos, em entrevista
concedido ao portal.(Abílio Dantas)
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